Tradução – As filhas de Maria Senhorinha
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Esta é uma tradução para o português do roteiro do episódio “As filhas de Maria Senhorinha”. Geralmente, nós apenas fazemos uma tradução para o inglês, mas esta é a nossa primeira história feita no Brasil e queremos que o maior número de pessoas do país a aproveitem.
É necessária uma nota explicativa: o seguinte texto é uma transcrição literal de um áudio em espanhol com depoimentos em português dos entrevistados. Assim, a narradora muitas vezes repete o que a pessoa está dizendo, para traduzi-lo. Nós sabemos que fica um pouco esquisito, mas achamos que é importante preservar a estrutura do roteiro. Obrigado!
[Daniel Alarcón, apresentador]: Bem-vindos á Radio Ambulante na NPR. Eu sou Daniel Alarcón.
Hoje começamos com uma notícia…
(SOUNDBITE DE NOTICIÁRIO)
[Jornalista]: Welcome to Noiva do Cordeiro, a small village in south east Brazil, where all the residents are women…
[Daniel]: Este vídeo saiu em 2014, no jornal inglês The Telegraph. Foi intitulado: “Inside the Brazilian all-woman village desperate for men”. Vejamos, traduzo: “Dentro da vila brasileira de mulheres desesperadas para encontrar homens”.
(SOUNDBITE DE NOTICIÁRIO)
[Jornalista]: Now, some reports suggest that, because of this, they are suffering from broken hearts, and all they need is a man like myself to come in and improve their lives…
[Daniel]: Falava sobre esse lugar no Brasil, habitado apenas por mulheres, todas jovens, todas lindas e todas à procura de marido. The Telegraph tinha publicado um artigo sobre a cidade alguns dias antes, e a notícia tornou-se viral na Inglaterra. Outros jornais —como The Mirror e o Daily Mail— publicaram a mesma história. Mas não apareceu somente na Inglaterra: também em jornais de todo o mundo. Da Bolívia à Índia.
[Isabel Cadenas, produtora]: E a mesma notícia continua aparecendo até hoje. A última vez que a encontrei foi nas páginas de jornais da Quênia e da Polônia. Mas o começo foi, sim, este vídeo de The Telegraph que dura apenas 2 minutos.
[Daniel]: Esta é Isabel Cadenas.
[Isabel]: O jornalista é um inglês alto, jovem e pálido, que caminha entre as mulheres que trabalham no campo…
(SOUNDBITE DE NOTICIÁRIO)
[Jornalista]: Would I be a welcome addition here in the community? Keila, am I good husband material?
[Keila]: Com certeza… [Risos]
[Periodista]: Yeah? Yeah?
[Isabel]: Pergunta-lhes se seria bem recebido na comunidade e, acima de tudo, se poderia ser um bom marido. A condescendência desse homem me desconcertou. E, ao mesmo tempo, a história me pareceu fascinante: havia realmente um lugar no Brasil onde só viviam mulheres?
Comecei a pesquisar, li tudo o que encontrei e percebi que todas as manchetes tinham uma abordagem totalmente machista: se houvesse uma aldeia de mulheres, era certo que estavam desesperadas por conseguir homens.
[Daniel]: Então Isabel comprou um bilhete de avião e foi ao Brasil para conhecer este lugar.
[Auxiliar de vuelo]: Senhores passageiros, bem-vindos a Confins Belo Horizonte. Pedimos que permaneçam sentados…
[Isabel]: Decidi ir ao Brasil por duas coisas. Por um lado, porque se houvesse realmente uma sociedade matriarcal na América Latina, eu a tinha de conhecer. E, por outro lado, porque queria contar sua verdadeira história, por trás da abordagem machista de todas essas notícias.
A primeira coisa a saber de Noiva do Cordeiro é que pertence a um município chamado Belo Vale, que fica no estado de Minas Gerais, no sudeste do Brasil. Para chegar lá, peguei dois dois aviões e depois dois ônibus. O último ônibus me levou de Belo Horizonte, capital do estado, para Belo Vale.
A estrada é linda. Há cachoeiras, pequenas vilas e muitas plantações de tangerinas, ou como são chamadas lá: mexericas, que é a fruta local.
Eu estava emocionada, ansiosa e acima de tudo muito nervosa por chegar lá.
Como o ônibus não ia até Noiva do Cordeiro, uma das mulheres da comunidade que eu contatei por Facebook, tinha-se oferecido para me ir buscar em Belo Vale. De lá, me levaria até a Noiva do Cordeiro em carro…
Flávia! Tchau!
O nome dela é Flávia.
Finalmente!
[Flávia]: Finalmente!
[Isabel]: A primeira coisa que me surpreendeu é que ela não veio só…
[Isabel]: Qual é o nome de você?
[Dario]: Dario.
[Isabel]: Dario. Dario.
Ela chegou com um homem. Um homem mais velho que me apresentou como Dario.
Era seu sogro.
Se havia um sogro isso implicava que havia, também, um marido: isto é, implicava que a Flávia era uma mulher casada.
Fiquei chocada. Mas tentei dissimular. Subimos ao carro para ir a Noiva e tentei me concentrar em falar sobre outras coisas. Como, por exemplo, o produto local, que sempre é um muito bom tópico de conversa, seja em espanhol ou em português…
Mandarina, clementina, tangerina…
[Dario y Flávia]: Tangerina.
[Isabel]: ‘Mandarina’ em espanhol.
Mas na verdade fui todo o caminho para Noiva do Cordeiro pensando em como mudar as perguntas que tinha para a Flávia. Tinha pensado nelas para uma mulher solteira.
Meia hora depois, chegamos à comunidade. Apenas uma encosta com umas poucas dúzias de casas e, por toda parte, árvores de mexerica, abacates, bananeiras. Todas as casas foram construídas ao redor da casa principal, onde a Flávia e seu sogro me deixaram…
Bom dia, Isabel.
[Dete]: Bom dia, sou Dete.
[Isabel]: Um prazer.
[Dete]: O prazer é todo meu.
[Isabel]: Qual é o nome de você?
[Dete]: Dete. Você é Isabel?
[Isabel]: Assim que cheguei, muitas pessoas vieram me cumprimentar, me perguntaram como tinha sido a viagem, se tinha fome, se estava cansada, se tinha frio. Lá descobri que a casa principal em que nos encontramos se chama…
[Flávia]: Casa Mãe.
[Isabel]: “A Casa Mãe”.
A casa mãe é um complexo de duas casas com quartos onde vivem umas 80 pessoas. E no meio está a cozinha comunitária, que é imensa. Eles têm 8 fogões de lenha, e ao lado um refeitório com mesas longuíssimas e cadeiras para várias centenas de pessoas. Esse refeitório também é imenso.
Quando um turno de refeição termina, as pessoas saem de todos os lados para limpar tudo: para varrer, para esfregar, para recolher.
Fiquei surpresa ao ver tantas pessoas juntas, cada uma com algo a fazer. E quando digo ‘pessoas’ quero dizer: mulheres e homens, meninas e meninos, velhas e velhos.
Noiva do Cordeiro parecia uma vila totalmente normal. Nem rastro dessa “maioria de mulheres” que tinha lido na imprensa. Mas quase não tive tempo para pensar sobre isso porque imediatamente me levaram para um salão que usam para fazer apresentações.
[Edinele]: E aí gente, saudades?
[Isabel]: Era sábado e se celebrava a “Sexta da viola” —ou “Sexta-feira do violão” — uma festa que fazem todas as semanas.
[Edinele]: É Isabel, nem? Queria te agradecer por você ter saído de tão longe para estar aqui…
[Isabel]: A festa começou com Edinele, a apresentadora, saudando-me em nome de toda a comunidade e agradecendo por ter vindo de tão longe. Pouco a pouco foram subindo ao palco grupos de dança, um coro, uma dupla que faz playback do Michael Jackson.
(SOUNDBITE DE CANÇÃO)
[Isabel]: E, finalmente, a apoteose: Marcia e Maciel, um grupo de música que parece profissional…
(SOUNDBITE DE CANÇÃO MARCIA Y MACIEL)
[Isabel]: E depois deles…
[Edinele]: Keila Gaga! [Aplausos]
[Isabel]: Keila Gaga: uma mulher loira, vestida como Lady Gaga, com seu grupo de dançarinos iguaizinhos aos de Lady Gaga.
(SOUNDBITE DE CANÇÃO KEILA GAGA)
[Isabel]: O público conhecia todas as músicas: cerca de 300 pessoas cantando, dançando, aplaudindo, gritando… E em quanto eles pareciam chegar a alguma coisa parecida com o êxtase, eu não podia parar de me perguntar: onde estou? que lugar é este? E acima de tudo: de onde saiu a história da vila onde só vivem mulheres?
Talvez a melhor maneira de responder a isso seja parar.
E retroceder um par de séculos…
À origem da comunidade.
Em 1890, Maria Senhorinha da Lima abandonou o marido e chegou a este lugar para morar com o amante: Chico Fernandes.
Uma mulher adúltera no Brasil rural do século XIX. Imaginem.
Quando teve o primeiro filho, a igreja a excomungou. Ela e as 4 gerações seguintes. E não era pouco: Chico e Maria Senhorinha tiveram 9 filhos.
Foi nesse momento quando começou o estigma. Para as aldeias vizinhas, ela e seus descendentes formaram uma comunidade onde as mulheres eram livres demais: isto é, adúlteras: isto é, é claro, prostitutas.
Assim moraram até que nos anos 50, Delina, uma das netas de Maria Senhorinha, casou-se com Anísio Pereira, um pastor evangélico que passava por ali. Ele tinha 43 anos e ela 16. Tiveram 15 filhos.
E o pastor, que não confiava em nenhuma religião estabelecida, inventou outra: uma versão do evangelismo, ali, numa área profundamente católica. Isso fez com que o estigma crescesse…
Agora as adúlteras eram, além disso, evangélicas. E essa nova religião tinha, antes de tudo…
[Dora]: Muitas regras. A gente não podia cortar o cabelo, a gente não podia vestir curto…
[Isabel]: Muitas regras. Não podiam cortar os cabelos, tinham que usar manga comprida, não podiam se maquiar… Esta é Dora, uma mulher baixinha, magra, de cabelos curtos, que trabalha como costureira na fábrica da vila.
[Dora]: Você não podia… você tinha que orar muito, tirar muito tempo de oração, principalmente os homens. Não tinha como trabalhar o dia todo, entendeu? Então, ficou uma vida muito difícil.
[Isabel]: Diz que as pessoas viviam para a igreja: você tinha que rezar tantas vezes ao dia que os homens não podiam trabalhar. Mas isso não era tudo: uma das coisas mais surpreendentes que Dora me contou é que o pastor proibiu até a música:
[Dora]: Você ouviu a música, mas aquilo era proibido, cê tirava aquilo da cabeça.
[Isabel]: Dora tinha ouvido a música de longe, mas como estava proibida, diz, “a tirava da cabeça”.
Até que, em 1991, Nite, uma das 15 filhas do pastor, começou a preparar seu casamento…
[Dora]: Aí ela ia casar. Daí ela foi em Belo Horizonte, acho que na casa dum tio dela…
[Isabel]: Nite foi para Belo Horizonte e viu na televisão um casamento onde a noiva entrava com música. E ela disse a seu pai que era isso o que queria para ela.
[Dora]: Aí ela falou: não, eu quero a música. E todo mundo dizia…
[Isabel]: Mas ele lhe disse nem pensar…
Mesmo assim, as pessoas da vila insistiram tanto que, no final, o pastor cedeu. Mas a contragosto. Eles contrataram um conhecido que tinha um aparelho de som e apenas uma fita cassete: “Sanfona lascada”, de Voninho. Um grande sucesso nos anos 80.
(SOUNDBITE DA CANÇÃO “SANFONA LASCADA”)
[Dora]: Quando foi pra festa, e nós achamos aquilo muito bom, já que teve a música.
[Isabel]: Essa fita tocou uma e outra vez, a noite toda.
[Dora]: E nós dançou muito.
[Isabel]: E eles dançaram muito.
[Dora]: Nem sabia o que era dançar, mas aí dancei. Aprendi a dançar, fiquei boa para dançar.
[Isabel]: Dora nunca tinha dançado. Tinha 35 anos de idade. Mas aprendeu. E descobriu que a dança era boa. E que algo tão bom não poderia a impedir de ir para o céu:
[Dora]: Não precisa tanta coisa para ir pro céu, gente!
[Isabel]: Muitas pessoas na comunidade já vinham se questionado há um tempo se realmente teriam que viver desse jeito para ir para o céu. Até os próprios filhos do pastor se perguntavam isso.
[Rosa]: Ah, ele era um homem simples, muito inteligente…
[Isabel]: Esta é Rosa, uma das filhas do pastor.
[Rosa]: A única falha que ele teve foi fanatizar com a religião. Só isso.
[Isabel]: Diz que seu pai era muito inteligente e que seu único defeito foi ser um fanático da religião. Já adulta, Rosa começou a questioná-la…
[Rosa]: Sim, quando eu cheguei na idade adulta eu comecei a fazer meus questionamentos…
[Isabel]: Ela questionou as regras, a hipocrisia e começou a partilhar o que pensava da religião do seu pai com as pessoas da comunidade. Primeiro com seus irmãos e sua mãe. E depois com as pessoas da vila.
[Rosa]: No início achou que eu estava um pouco exagerando, outros realmente já tinham pensado isso também…
[Isabel]: Alguns pensaram que a Rosa estava exagerando, mas outros concordaram com ela.
E então, no 91, no mesmo ano em que foi o casamento de Nite, eles decidiram se reunir com o pastor:
[Dora]: Ah, foi na casa dele. Bastantes dos membros da igreja e os próprios filhos também.
[Isabel]: Foram lá toda a família e alguns vizinhos, membros da igreja. Dora lembra bem:
[Dora]: E nós conversamos com ele, aquela igreja oprimida daquele jeito.
[Isabel]: Eles disseram-lhe que não queriam essa igreja que os oprimia, que ele via muitos defeitos em outras igrejas, mas que a dele também os tinha, e que estavam cansados de viver de acordo com sua vontade.
Surpreendentemente, o pastor concordou. Tanto, que pouco a pouco ele também parou de ir para a própria igreja:
[Dora]: Ficou pouca gente na igreja, pro resto ele também parou de ir, sabe? Parou com aquilo, é, e ficou quieto dentro da casa dele.
[Isabel]: Se antes o problema com as vilas próximas era que sua religião não era a católica, quando deixaram a religião o estigma aumentou: sem religião, eram, novamente, muito livres, descendentes de uma adúltera. Ou seja, mais uma vez, prostitutas.
[Dora]: Foi muito difícil a nossa vida. A nossa vida não foi fácil.
[Isabel]: Assim que o estigma continuou: as mulheres da vila que agora tem entre 20 e 35 anos o sofreram na escola. Foi o caso da Flávia, a mulher que veio me buscar na estação.
[Flávia]: Ah, era tanto absurdo, falavam muito absurdo, sempre no sentido de nossas mães que eram prostitutas.
[Isabel]: Flávia parou de estudar porque na escola a chamavam de “filha de prostituta”, ou filha “das mulheres do pastor”. Os piores insultos não vinham das crianças, diz, mas dos próprios professores:
[Flávia]: Mas era muito, muito triste o que a gente ouvia. E por incrível que pareça, os professores eram piores que os alunos.
[Isabel]: E, no entanto, como Dora me disse, tendo deixado a religião tiveram, finalmente, tempo para pensar.
[Dora]: E as pessoas ainda não tinham parado pra pensar.
[Isabel]: O que eles começaram a pensar foi como queriam viver a partir de então. Não foi uma decisão difícil: diante de tantas dificuldades, as pessoas de Noiva do Cordeiro estavam muito próximas, então foi bastante natural. Eles queriam viver de uma maneira comunitária.
Começaram com duas máquinas de costura: uma era da Dora, a outra era da Rosa. As uniram e fundaram uma fábrica. E fizeram assim com tudo o demais: coletivizaram a terra, o trabalho do campo, mas também as tarefas diárias de cuidado, desde a educação das crianças até a comida. Coletivizaram até a igreja: a derrubaram entre todos.
No seu lugar construíram um bar. Um lugar onde as pessoas se divertem. E o dono do bar, curiosamente, é outro dos filhos do pastor.
E isso não é tudo. Há pouco conseguiram abrir a própria escola, sem ajuda do Estado: os professores são jovens da vila que estudam na universidade.
[Pedro]: Aqui a minha faculdade, quem paga é a comunidade. Junta todo mundo para pagar minha faculdade.
[Isabel]: Quem fala é o Pedro, o professor de biologia. Me diz que a comunidade paga seus estudos e ele, em troca, dá aulas.
[Pedro]: Eu não recebo, mas por vontade própria. E se a comunidade querer me pagar como professor eu nunca vou aceitar.
[Isabel]: E diz que não quer receber dinheiro nenhum por este trabalho porque é como se estivesse ensinado à sua família, o que na verdade é: os 300 habitantes de Noiva do Cordeiro são descendentes em algum grau da fundadora da comunidade: Maria Senhorinha.
Durante a minha estadia falei com muitas pessoas, fui a todas as tarefas da vila e gravei muitas horas de entrevistas para poder descrever a comunidade.
Mas não é fácil, como diz o Pedro.
[Pedro]: É difícil de explicar a Noiva do Cordeiro. Ver a Noiva do Cordeiro em uma imagem, você não entende. Ouvir a Noiva do Cordeiro em um áudio, você não entende. Você só entende a Noiva do Cordeiro sentindo.
[Isabel]: Pedro diz que Noiva do Cordeiro não pode se entender com imagens nem com áudio, que só é entendido indo lá e sentindo.
[Daniel]: Uma pausa e voltamos…
Intervalo comercial
[Daniel]: Isabel diz que a melhor maneira de entender o que é Noiva do Cordeiro é talvez com uma história…
[Isabel]: E de todas as que me contaram, fico com a do Erick.
[Erick Araujo]: Meu nome é Erick Araujo.
[Isabel]: Erick tem 35 anos. Ele é o “hacker” da comunidade: edita vídeos, os grava, e está instalando a internet para que a vila tenha wifi. E é, acima de tudo, muito tímido: toda vez que ele me via, parecia com medo do microfone. Mas um dia, ele veio me procurar na cozinha e me disse que, se quisesse, me contaria sua história. “Sem micro?”, perguntei. “Como você quiser”, respondeu.
[Erick]: Por volta dos meus 18 anos eu comecei a perceber que eu era diferente dos outros rapazes.
[Isabel]: Aos 18 anos, Erick começou a sentir que era diferente aos outros rapazes da comunidade. Não sabia exatamente o que era até que foi para Belo Horizonte e descobriu a internet:
[Erick]: Chegando em Belo Horizonte conheci a internet.
[Isabel]: Lá, na capital, todos o chamaram com uma palavra que ele não entendia: assim que procurou na internet e entendeu que sim, que era gay.
[Erick]: E acabei descobrindo que eu era gay.
[Isabel]: Para ele foi um descobrimento terrível: passou dois anos sem contar a ninguém. Sofrendo muito.
[Erick]: Sofri muito, porque quando você ama muito as pessoas você espera muito da aprovação das pessoas. E eu não tinha coragem de contar a ninguém, medo da reprovação, até porque não existia nenhum outro gay na comunidade. [Chora]
[Isabel]: Tinha medo de que as pessoas da comunidade não o aceitassem. Até aquele momento, ninguém tinha saído do armário em Noiva do Cordeiro. Não ousou contar a ninguém. Até que, um dia, ele contou a sua melhor amiga: Keila.
[Keila]: Olha quando… quando o Erick falou comigo que ele era gay, eu chorei. Mas eu não chorei porque ele era gay, eu chorei porque ele estava sofrendo.
[Isabel]: Keila chorou: ela também não sabia o que era ser gay, mas seu amigo estava sofrendo tanto que tinha que ser algo triste.
[Keila]: E depois com o tempo e que eu fui entender… que o sofrimento dele era por medo.
[Isabel]: Depois entendeu que, na realidade, seu amigo sofria de medo e que, se esse medo desaparecesse, ele ficaria feliz.
E lá, Keila e sua irmã, Marcia, tiveram uma ideia
[Erick]: Aí elas tiveram uma ideia de fazer um teatro…
[Isabel]: Fazer uma peça para explicar à comunidade que havia homens que gostavam de homens. Havia vários personagens: alguns eram gays, outros eram preconceituosos e, no final da peça, aparecia o preconceito, como um outro personagem. Erick interpretou um dos personagens gays da peça:
[Erick]: Estava muito nervoso, até então pouquíssimas pessoas da comunidade sabiam que eu era gay.
[Isabel]: E a peça foi um sucesso.
[Erick]: Ah… Foi um momento de emoção, porque tinha muita gente chorando, ficou muita gente comovida com o teatro.
[Isabel]: Erick lembra especialmente dos anciãos da comunidade: como eles o abraçaram e disseram que a peça os tinha comovido e tinha feito que mudassem sua visão.
Entre o público também tinha pessoas como o Pedro, o professor de biologia. Nesse momento tinha 12 anos e já sabia que ele também era diferente.
[Pedro]: Praticamente abriu as portas para todos os outros que tinha na comunidade…
[Isabel]: Por isso se sente tão agradecido com o Erick: porque ele lhes abriu o caminho.
A história pode parecer uma anedota, mas para o Erick, como para o Pedro, representa a essência de Noiva do Cordeiro:
[Pedro]: Aqui você pode ser quem você quiser. Aqui você deve ser quem você quiser. Que todos vão te ajudar.
[Isabel]: A luta de toda a comunidade pela felicidade de uma pessoa só.
[Pedro]: São 300 pessoas em prol da felicidade de apenas uma pessoa. É todo mundo a estender a mão e falar: você não vai sozinho, vai estar todo mundo junto com você. Que não importa o que vai acontecer, não importa o que você vai enfrentar, a gente vai enfrentar junto.
[Isabel]: Que 300 personas te apoiem. Não sei se alguma vez você sentiu isso.
Eu não.
Mas uma vez que entendi como eles vivem, precisava amarrar um pequeno fio solto. Precisava entender como aconteceu e, especialmente, como isso afetou, no meio de toda essa vida comunitária “a famosa notícia”…
A famosa notícia…
[Flávia]: Ah! dos casamentos… lembro…
[Isabel]: Flávia se lembra perfeitamente do dia da notícia. Foi a noite de 27 de agosto de 2014:
[Flávia]: E eu lembro que era no meio da noite e o telefone tocou 24 horas por dia. Tocou muito. Incessantemente.
[Isabel]: O telefone —o único que tinha em todo Noiva, segundo me disse Flávia— tocou por 24 horas, e elas se preocuparam.
[Flávia]: Várias pessoas levantaram e atendeu o telefone e tava falando uma língua que até hoje não sei qual. [Risos]
[Isabel]: Mas falavam-lhes em línguas totalmente desconhecidas.
No dia seguinte, uma jornalista de São Paulo as ligou para dizer o que estava acontecendo.
[Flávia]: Eh, gente, vocês estão sabendo dessas matérias que estão saindo de vocês? Mas, que matérias?
[Isabel]: Havia mais de 30.000 notícias sobre elas em todo o mundo.
[Flávia]: A primeira pergunta é que não veio ninguém fazer entrevista aqui, nos não sabe, até hoje não me pergunte…
[Isabel]: Nunca souberam de onde veio a notícia. Flávia me disse que “aqui não veio nenhum jornalista”, e que ninguém também pediu permissão para usar a fotos do Facebook da comunidade.
E o mesmo, é claro, me perguntava eu: desde minha chegada aquele sábado, tinha visto tantos homens como mulheres. A notícia era de 2014. Era possível que a comunidade mudasse tanto em apenas 3 anos? Porque aqueles homens que eu tinha conhecido nasceram e cresceram em Noiva. Onde estavam quando a notícia apareceu? Era simplesmente uma notícia falsa?
[Harry Wallop]: Yes, ok. My name is Harry Wallop. I’m a British feature writer.
[Isabel]: Este é o Harry Wallop, o jornalista de The Telegraph que, naquele vídeo de 2014, caminhava por aquela vila habitada aparentemente apenas por mulheres solteiras.
No mesmo dia em que The Telegraph publicou o artigo, Harry foi chamado da redação. Ele ainda não tinha lido o jornal, assim que não sabia nada sobre Noiva do Cordeiro. Também não sabia nada de português.
[Harry]: They were obsessed at The Telegraph, in a rather wonderful way —that they were going to be beaten by The Daily Mail, their main competitor…
[Isabel]: Mas o Telegraph tinha tanto medo que o Daily Mail, seu concorrente histórico, iria se adiantar e mandar alguém para o campo, que em questão de horas o colocaram em um avião para o Brasil.
[Harry]: And it was when I was sitting on my plane across the Atlantic and I was reading the story carefully that I saw the quite gaping holes in the story…
[Isabel]: Já no avião, Harry começou a perceber as lacunas que a história tinha…
[Harry]: It just didn’t quite ring true, but it was certainly fun.
[Isabel]: Algo não estava certo. Nas fotos eu vi que na aldeia também tinha crianças. Parecia-lhe muito estranho que houvesse apenas mulheres. Mas para Harry foi, sem dúvida, uma história muito divertida.
Quando chegou, seu contato no Brasil confirmou: a história tinha sido “sexed up”, como dizem em inglês. Ou seja, algo mudou para que ele pareça, literalmente, mais sexy. Porque, como já sabemos, em Noiva há homens.
Só que, quando Harry chegou, eles não estavam lá.
[Harry]: My memory was 40 to 50 women, all working in the fields, and there was only one man I saw…
[Isabel]: Harry diz que viu cerca de 40 ou 50 mulheres e apenas um par de homens durante as 3 horas que passou na comunidade. Muitos homens iam para Belo Horizonte para trabalhar durante a semana e só voltavam de sexta-feira a sábado. E, para ser justa, é verdade que no vídeo Harry começa dizendo:
[Harry]: All the residents are women. Well, nearly all, and certainly during the week.
[Isabel]: Que todas as residentes são mulheres, ou bem, quase todas. E que isso certamente é verdade durante a semana.
Perguntei-lhe por que não tinha sido mais claro, por que ele continuou focando na história das mulheres que procuravam homens.
[Harry]: As in why I didn’t tell the truth? And Why did I not make it…? Well, ah… ah… Again, I’d flown across The Atlantic at a huge cost for the Daily Telegraph, it was their cost, and they were going to run the story anyway.
[Isabel]: Harry hesita antes de responder, mais me diz que o Telegraph gastou muito dinheiro para enviá-lo para o Brasil e eles iriam publicar a história de qualquer jeito. E também, para ele, como dizem no mundo jornalístico…
[Harry]: “Never let the facts get in the way of a good story”, is one of the great catchphrases of Fleet Street.
[Isabel]: Isto é: “Nunca deixe os fatos arruinarem uma boa história”.
[Harry]: And often editors, just, you know, we stretch resources, pages to fill. It’s a good story, don’t ruin a good story by… you know.
[Isabel]: E que muitas vezes os editores extraem o suco dos recursos que têm porque precisam preencher as páginas do jornal. Então ele decidiu escrever a história assim porque, simplesmente, era mais divertida…
[Harry]: If it’s a fun story, and it’s not doing anyone any harm…
[Isabel]: E não machucava ninguém.
Eu não tinha tanta certeza de que a história não machucava ninguém. O vídeo e o texto de Harry tinham uma perspectiva muito machista, e assim contou também a história a maioria da mídia no mundo.
Então, assim que pude, perguntei às mulheres o que queria perguntar desde o início: como se sentiram quando todo mundo falava delas como a vila das mulheres solteiras desesperadas por achar marido?
E a resposta me surpreendeu:
[Keila]: Acho que foi uma coisa muito, assim engraçada, muito, foi uma coisa legal.
[Isabel]: Quem fala é Keila Fernandes, mais conhecida como Keila Gaga: a imitadora de Lady Gaga. Para ela foi engraçado, legal, surpreendente.
[Keila]: Foi bom, foi muito bom.
[Isabel]: Foi algo muito bom. E isso foi o mesmo que me disseram todas, desde a Rosa…
[Rosa]: Não achei que foi uma notícia desagradável, pelo contrário.
[Isabel]: O que disse é que para ela é normal dizer que as mulheres solteiras estão procurando marido. E que não lhe parece desagradável, mas antes pelo contrário…
Até Vânia, sua filha.
[Vânia]: Não, eu não me senti mal. É uma notícia que não prejudicou a gente em nada.
[Isabel]: Que diz que já as chamaram de tantas coisas e já tinha sofrido tanto, que a notícia não as machucou e que o que fez foi, acima de tudo, ajudá-las.
Eu não podia acreditar. Não havia vestígios de rancor, nem de ofensa, nem de desconforto. Não entendia, acima de tudo, isso que Vânia disse: a notícia as ajudou. Ajudou para o quê?
Parece que em muitas coisas.
[Flávia]: Teve muito gringo, mais que brasileiros, porque as matérias saíram: nossa! teve monte de gringo.
[Isabel]: A primeira consequência da notícia chegou muito cedo. Flávia me diz que começaram a aparecer homens solteiros à procura de esposa. Eram principalmente gringos, que é como chamam no Brasil aos estrangeiros. Nem ligaram; só apareciam com suas mochilas nas costas…
[Flávia]: Que até hoje. É uma coisa que não parou, entendeu? Continua…
[Isabel]: E continuam vindo. Agora um pouco menos, mas naquela época vieram de todos os países do mundo. De lugares que a própria Flávia não conhecia.
E com a chegada desses homens solteiros aconteceu algo mais: os homens da comunidade começaram a ter medo.
[Flávia]: Eu já estava casada, mas até meu marido ficou morrendo de medo de aparecer um gringo…
[Isabel]: Medo de que suas mulheres se apaixonassem por esses homens encantadores, como Flávia nos diz.
[Flávia]: Mas não aconteceu isso, não.
[Isabel]: Mas não, isso claramente não aconteceu:
[Anderson Fernandes]: Sou Anderson Fernandes.
[Isabel]: Alguma coisa mais?
[Anderson]: [Riso] Casado com a Flávia.
[Isabel]: Este é Anderson, o marido da Flávia.
[Anderson]: Hoje eu vou embora para Belo Horizonte, porque vou trabalhar amanhã e volto na sexta. Vinte e dois anos que eu faço isso.
[Isabel]: Você tem quantos anos agora?
[Anderson]: 37 .
[Isabel]: Anderson viaja para Belo Horizonte toda semana para trabalhar. Leva fazendo o mesmo há 22 anos.
O entrevistei no carro dele, um domingo, pouco antes de partir para a cidade. Flávia estava sentada no banco de trás…
Vamos falar de amor…
[Anderson]: Está aqui [Risos], ta no banco de trás.
[Isabel]: Anderson é muito tímido, mas ele me contou sobre o medo que teve quando começaram a chegar os gringos. E me disse que esse medo continua até hoje.
[Anderson]: Será que vai chegar um gringo rico e vai levar minha Flávia? [Risos]. Eu fico com medo, sim.
[Isabel]: Flávia e Anderson já estavam casados quando saltou a notícia, mas muitas outras pessoas não. E quando chegaram os gringos, houve uma explosão de casamentos.
[Flávia]: Porque eu acho que os homens ficaram com medo de aparecer outros homens [Risos] e casar…
[Isabel]: Os que estavam se fazendo de palhaços, diz a Flávia, se casaram porque não queriam deixar suas mulheres para os gringos.
Flávia diz “se casar”, mas em Noiva isso não significa o mesmo que em outros lugares: poucos casais aqui têm papéis ou realizaram cerimônias de casamento. Aqui as pessoas se juntam e, quando não se querem mais, separam-se. Sem papéis.
Talvez por essa forma tão livre de conceber as relações de casal, o casamento não é, na realidade, mais do que uma anedota nesta história da “notícia”.
E é que acredito que a notícia trouxe algo mais profundo do que os casamentos. Todas aquelas pessoas que começaram a vir — a procurar esposa ou, como eu, a conhecer sua história — serviram-lhes como uma espécie de espelho: mostrava-lhes sua própria realidade.
Vânia me diz que quando o primeiro jornalista chegou na vila, as pessoas lhe perguntaram o que ele ia gravar, se a vila não tinha nada de particular. E continuaram perguntando a todos aqueles que chegaram:
[Vânia]: E aí a gente, até então, ficou assim: o que eles vão falar de nós? Nossa vida é tão tranquila. Não tem nada diferente.
[Isabel]: Até então, as pessoas de Noiva do Cordeiro estavam convencidas de que todos viviam assim, em comunidade.
E isso foi o melhor da notícia: perceber que a maneira como eles viviam era especial, porque a construíram juntos. Talvez seja por isso que em Noiva do Cordeiro ninguém parece ter sonhos individuais, como o Pedro diz:
[Pedro]: Meu sonho individual, de certa forma ele se torna um sonho comunitário. Porque a minha vida é comunitária.
[Isabel]: Entre os sonhos coletivos, há aqueles que imaginam: que a vila seja mais próspera, que o mau tempo não estrague a colheita, ou que a fábrica tenha cada vez mais ordens.
Mas há outros um pouco mais inesperados: um dos mais recorrentes é que Keila Gaga e a dupla Marcia e Maciel sejam cada vez mais famosos. E não estão no mal caminho.
Em 2016, Keila e sua equipe de dançarinos se apresentaram na recepção da tocha olímpica em Belo Horizonte, em frente a 30.000 pessoas. Talvez seja hora de dizer que Keila e Marcia, as duas músicas da comunidade, também são filhas do Anísio: o pastor que proibiu a música.
No último dia da minha estada, acompanhei Keila e sua equipe em um programa de televisão e, finalmente, entendi.
Eu tinha viajado para o Brasil para salvar essas mulheres do jugo do olhar machista, e o resultado foi que tinha caído numa armadilha.
É verdade que as mulheres de Noiva do Cordeiro não enviaram ao mundo a falsa notícia de que eram uma comunidade de mulheres desesperadas por achar marido. Mas tampouco negaram isso. E ainda seguem sem querer fazê-lo. Por quê?
O perguntei a Márcia depois do programa…
Mas vocês nunca fizeram nunca nada para desmentir isso?
[Marcia]: Não, não…
[Isabel]: Por quê?
[Erick]: As matérias que vem a gente..
[Marcia]: Não, porque eu acho que é muito importante.
[Isabel]: Que a gente venha para cá?
[Marcia]: É, aí. Se não tivesse isso você não tinha vindo.
[Isabel]: “Se não tivesse sido pela notícia, nunca teríamos te conhecido”, me dizem, “ou você a nós”. Nunca negaram porque querem que continuemos indo.
Imagine que durante mais de um século sua vila tem sido vítima de um estigma: primeiro as chamam de adúlteras, depois prostitutas, então riem da sua religião, depois de não terem religião, e, novamente, eles as chamam de prostitutas. Imagine que um dia, como por passe de mágica, um estrangeiro chega e lhes diz que seu modo de vida é especial.
E depois outro.
E depois outra.
Imagine que sua vila, uma vez amaldiçoada, é agora a vila mais famosa da região, e que os carros passam sem parar pelas outras vilas para chegar à sua. Imagine que, de repente, você começa a perceber que sua vida é diferente, que sua vida é especial. E que, se conseguiram ter essa vida depois de tantos anos de estigma, podem se tornar o que quiserem: fundar uma escola, viver do que produzem, cantar diante de milhares de pessoas. Imagine que todo isto acontece por causa de uma notícia. E que essa notícia é falsa.
Você a negaria?
[Daniel]: Isabel Cadenas Cañón é escritora e produtora de áudio. Moram em Madrid.
Esta história foi editada por Camila Segura e Silvia Viñas. O mixe e o design de som são de Ryan Sweikert.
A equipe de Radio Ambulante também conta com Andrés Aspiri, Jorge Caraballo, Patrick Mosley, Laura Pérez, Ana Prieto, Barbara Sawhill, Luis Trelles, David Trujillo, Elsa Liliana Ulloa e Luis Fernando Vargas. Carolina Guerrero é a CEO.
Radio Ambulante é produzido e mixado no programa Hindenburg PRO.
Saiba mais sobre Radio Ambulante e sobre esta história em nosso site: radioambulante.org. Radio Ambulante conta as histórias da América Latina. Eu sou Daniel Alarcón. Obrigado por nos ouvir.